sexta-feira, janeiro 25, 2008

O socorro debatido na comunicação social


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Central de Orientação de Doentes Urgentes

Queremos chamar a atenção para a reportagem e o subsquente debate que foram transmitidos pela SIC, onde o problema da assistência prestada pelo Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e pelos bombeiros quando chamados a acorrer a uma vítima de queda em Castedo, no concelho de Alijó.

Esta reportagem será particularmente importante e esclarecedora para quem esteja menos em contacto com os problemas específicos do Interior do País e as dificuldades com que se defrontam aqueles que aí desempenham missões de socorro.

A transcrição da conversa que envolve familiares da vítima, operadoras do INEM, bombeiros das corporações de Favaios e Alijó, proveniente do "site" do Correio da Manhã (CM), demonstra quer as dificuldades, quer as deficiências de atendimento e a fraca disponibilidade de meios locais, pelo que foi accionada a Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER).


Chamada da família da vítima para 112 pelas 04:00, sendo o contato feito por uma mulher:

Operadora: – Emergência médica, bom dia.

Mulher: – (imperceptível)

Operadora: – Mais alto, estou a ouvir muito mal.

Mulher: – (imperceptível)

Operadora: – Castedo, Alijó, Bairro de Santo António nº **. Diga-me o número de telefone caso a chamada vá abaixo.

Mulher: – *********

Operadora: – *********. Minha senhora, ouça o que lhe vou dizer. O que se passa aí?


O irmão da vítima substitui a mulher ao telefone e a conversa continua:

Irmão:– Estou? Estou?

Operadora: – Diga então o telefone daí.

Irmão: - *********.

Operadora: – Pronto, muito bem. Diga-me o que se passa aí.

Irmão: – Podia ligar-me aos bombeiros?

Operadora: – Diga-me o que se passa aí. Para que quer a ambulância?

Irmão: – (imperceptível)

Operadora: – Quer uma ambulância em sua casa?

Irmão: – A vir cá alguém é a guarda (GNR)], não é?

Operadora: – Mas quer a guarda ou a ambulância?

Irmão: – Vale mais a guarda.

Operadora: – Olhe, se é só a autoridade que quer, vai desligar e voltar a ligar 112 e pede autoridade. Se há pessoas feridas, é mais ambulância.

Irmão: – Não, não... Ele morreu.

Operadora: – Morreu?!

Irmão: – Ele deve ter morrido.

Operadora: – E é homem ou mulher?

Irmão: – É um homem.

Operadora: – Com que idade?

Irmão: – Quarenta e nove, mais ou menos.

Operadora: – Quarenta e quantos?

Irmão: – Quarenta e quatro.

Operadora: – Quarenta e quatro anos. Ele já estava doente ou foi agredido?

Irmão: – Ele estava doente.

Operadora: – Doente com quê?

Irmão: – Caiu!

Operadora: – Você é familiar dele?

Irmão: – Sou irmão.

Operadora: – O seu irmão já estava acamado?

Irmão: – Não. Estava em pé e tudo. Foi em casa. Ia a descer as escadas e caiu.

Operadora: – Ao descer as escadas caiu. Foi hoje a queda?

Irmão: – Foi, foi agora de noite.

Operadora: – O senhor disse que ele morreu.

Irmão: – É. Está morto. Deitou muito sangue pela boca.

Operadora: – Mas diga-me uma coisa: isso mesmo agora?

Irmão: – Foi. A minha mãe estava a dormir e deu conta.

Operadora: – Ele não respira?

Irmão: – Não.

Operadora: – Confirme-me a morada.

Irmão: – (imperceptível), Alijó.

Operadora: – Como?

Irmão: – Castedo, Alijó.

Operadora: – O senhor está a dizer que o seu irmão faleceu e está tão calmo. O senhor não está a brincar com o 122, pois não?

Irmão: – Não. Não estamos a brincar. Ouve lá.

Operadora: – Neste momento o seu irmão não se mexe e não respira?

Irmão: – Não, não, não.

Operadora: – Olhe, vai desligar que eu daqui a um bocadinho volto a ligar. Pretendem ambulância e autoridade. É isso?

Irmão: – Sim, sim.

Operadora: – Para que querem a autoridade?

Irmão: – Quer dizer que não se vai tocar nele nem nada. Não é?

Operadora: – O quê?

Irmão: – Não se pode tocar nele.

Operadora: – Fique a aguardar a chegada de ajuda. Boa noite.


Na sequência da chamada de emergência, outra operadora do Centro de Oorientação de Doentes Urgentes do INEM telefona para os Bombeiros de Favaios:

Operadora: – Boa noite. É do CODU do INEM. É uma saidinha para Castedo.

Bombeiro de Favaios: – Diga.

Operadora: – Para o Bairro de Santo António, n.º **. Diga-me uma coisa: a VMER de Vila Real é a mais próxima, não é?

Bombeiro de Favaios: – A de Vila Real já está fechada.

Operadora: – Quanto tempo demora a viatura médica?

Bombeiro de Favaios: – Ainda demora até ao Castedo. Vila Real...

Operadora: – Não. De Vila Real a Castedo?

Bombeiro de Favaios: – Ai. De Vila Real a Castedo? Sei lá.Três quartos de hora.

A operadora do CODU fala com uma médica que se encontra presente.

Operadora: – Doutora, a VMER demora três quartos de hora, mas também não tem coiso aberto...

Médica (M): [imperceptível]

Operadora: – Mas que quer que ponha? VMER não disponível?

M: [imperceptível]


A operadora do INEM volta a falar com os Bombeiros de Favaios:

Operadora: – Não há nenhum centro de saúde aberto?

BF: – Não, aqui está fechado.

Operadora: – Vamos mandar a VMER de Vila Real. Isto é um masculino, de 44 anos. Quem nos ligou diz que caiu das escadas, deitou sangue pela boca, parece estar morto.

Bombeiro de Favaios: – Diga. Estou?

Operadora: – Sim. Está-me a ouvir?

Bombeiro de Favaios: – Estou.

Operadora: – Estou. Está-me a ouvir?

Bombeiro de Favaios: – Estou...

Operadora: – Ó meu Deus! Eu estou a ouvir. Está-me a ouvir?

Bombeiro de Favaios: – Diga, diga...

Operadora: – Ouviu o que eu disse até aqui ou não ouvi nada?

Bombeiro de Favaios: – Não ouvi. Desculpe lá, estou a ouvir de telemóvel.

Operadora: – Vou mandar vir a VMER de Vila Real. O senhor caiu pelas escadas. Quem ligou diz que já está morto!.

Bombeiro de Favaios: – Ah!... Pois, e agora o que quer que se faça?

Operadora: – Ficha CODU 32...

Bombeiro de Favaios: – Espere aí, que eu agora não tenho aqui caneta!!!

Operadora: – Eu vou ajudá-lo. Vou passar a VMER de Vila Real para ajudar a chegar ao local. Não desligue. (...) Valha-me Deus, estou lixada.

Após este contacto operadora do CODU liga para a médica de serviço à VMER de Vila Real.

Médica da VMER: – Sim?

Operadora: – Olá, doutora. É uma saída, para longe.

Médica da VMER: – Para onde?

Operadora: – Castedo, Alijó. (risos)

Médica da VMER: – Ok. O que é?

Operadora: – Um senhor de 44 anos caiu pelas escadas. Deitou sangue pela boca. O contactante diz que ele está morto!

Médica da VMER: – Morto?

Operadora: – Sim. Diz o irmão.

Médica da VMER: – Pois, coitadinho.

Operadora: – Mas com uma calma gélida, segundo a minha colega.

Médica da VMER: – Hummm...

Operadora: – Eu vou passar-lhe os Bombeiros de Favaios para dar uma ajudita.

A operadora do CODU volta a conversar com os Bombeiros de Favaios.

Operadora: – Estou, Favaios?

Bombeiro de Favaios: – Estou, estou.

Operadora: – Ajude aqui a viatura médica, se faz favor..

Bombeiro de Favaios: – Sim, sim, ora diga lá então..

Operadora: – Estão em linha, pode falar.


A chamada é transferida de modo a que o bombeiro de Favaios e a médica da VMER de Vila Real falem um com o outro.

Médica da VMER: – Boa noite.

Bombeiro de Favaios: – Boa noite.

Médica da VMER: – Boa noite. Podiam dar-nos algumas indicações? Onde é o...

Bombeiro de Favaios: – Como, como?

Médica da VMER: – Se nos podia dar algumas indicações. Onde é...

Bombeiro de Favaios: – Ora bem. Eu não sei como é que vou explicar. Chega ali a Alijó, vai adiante, ao pé das bombas de gasolina. Há uma rotunda à esquerda. Corta à esquerda, para ir ao Intermarché. E segue sempre em frente para o Castedo. Sempre estrada fora.

Médica da VMER: – Para onde?

Bombeiro de Favaios: – Para o Castedo.

Médica da VMER: – OK. Pronto, obrigado.

Bombeiro de Favaios: – E agora, o que faço?

Médica da VMER: – Diga?!?

Bombeiro de Favaios: – O que faço? É preciso ir lá eu?

Médica da VMER: – (risos). Ó senhor, nós vamos a caminho.


Após o diálogo, operadora do CODU volta a falar com o bombeiro de Favaios:

Operadora: – Ó, Favaios!

Bombeiro de Favaios: – Diga, diga.

Operadora: – Obviamente é para lá ir a ambulância para iniciar suporte básico de vida. Se estiver em paragem. Digo eu.

Bombeiro de Favaios: – Olhe, mas arranco para lá eu?

Operadora: – ... (risos).

Bombeiro de Favaios: – Estou?

Operadora: – Peço desculpa. Eu estou a falar com uma corporação de bombeiros, não estou?

Bombeiro de Favaios: – Está sim. Mas estou a atender o telemóvel.

Operadora: – Então eu estou a dar-lhe uma saída, e pergunta-me a mim o que vai fazer? Nunca tal me aconteceu.

Bombeiro de Favaios: – Desculpe lá, desculpe lá.

Operadora: – Claro que tem de ir para o local com a ambulância e com o colega.

Bombeiro de Favaios: – Então qual é o número?

Operadora: – 32703.

Bombeiro de Favaios: – Posso desligar, CODU?

Operadora: – Pode, pode.

Bombeiro de Favaios: – Arranco então. Vou já arrancar para lá.

Operadora: – Sim, arranque para lá. Avalia a vítima e, quando tiver dados, dá a informação para cá para o CODU.

Bombeiro de Favaios: – Eu estou sozinho.

Operadora: – Está sozinho?

Bombeiro de Favaios: – Estou.

Operadora: – Então como vai sair uma ambulância sozinha?!.

Bombeiro de Favaios: – Não tenho mais ninguém agora aqui.

Operadora: – Como não tem?

Bombeiro de Favaios: – Então como vou fazer!?!

Operadora: – Espere aí! (dirigindo-se para a médica da VMER) Ó doutora, Favaios está sozinho, não tem mais ninguém... (volta a falar com o bombeiro) Não arranja outro tripulante?

Bombeiro de Favaios: – Quem é que vou arranjar agora?!

Operadora: – Qual é a corporação mais próxima além de vocês?

Bombeiro de Favaios: – Só Alijó.

Operadora: – Quanto tempo para chegar ao local?

Bombeiro de Favaios: – É só ir buscar a ambulância e arrancar!

Operadora: – É só ir buscar a ambulância e arrancar! (risos em fundo)

Bombeiro de Favaios: – Cinco minutos.

Operadora: – Mas quanto tempo demora a chegar ao local?

Bombeiro de Favaios: – Daqui ao local são sete a oito minutos.

Operadora: – Dez minutos. Qual é a corporação mais próxima? É Alijó?

Bombeiro de Favaios: – É Alijó.

Operadora: – Quanto tempo Alijó demora a chegar ao local?

Bombeiro de Favaios: – Mais ou menos a mesma coisa. É pegado.

Operadora: – Então vou mandar Alijó. Vou pedir ajuda, para você ajudá-lo a chegar ao local. (desabafo para alguém que está ao lado) Tu estás a ver? Ele está sozinho. “O que é que eu faço?”, pergunta-me ele.


Depois de contactar a corporação de Favaios, a operadora do CODU telefona para os Bombeiros de Alijó:

Bombeiro de Alijó: – Estou sim...

Operadora: – Uma saidinha para Castedo.

Bombeiro de Alijó: – Castedo é Favaios!

Operadora: – Pois é. Mas Favaios está só com um senhor e a ambulância. E a vítima pode estar em paragem respiratória. Vai a viatura médica de Vila Real. Não posso enviar uma ambulância só com uma pessoa para fazer uma emergência médica.

Bombeiro de Alijó: – Aqui também não tenho ninguém.

Operadora: – Não tem aí ninguém.

Bombeiro de Alijó: – Não. Só se chamar...

Operadora: – Então...

Bombeiro de Alijó: – Aqui só fico eu de noite.

Operadora: – Só fica o senhor sozinho de noite na corporação? Então se há um incêndio?

Bombeiro de Alijó: – Tenho de tocar a sirene.

Operadora: – Tem de tocar a sirene. Ó valha-me Deus!

Bombeiro de Alijó: – Minha amiga, não temos meios.

Operadora: – (dirigindo-se à médica da VMER) Ó doutora, Alijó idem idem...

Bombeiro de Alijó: – Mas eu vou chamar um colega meu.

Operadora: – Ó doutora. Eu posso mandar ir o de Favaios e o de Alijó. (dirige-se ao bombeiro) O senhor pode ir?

Bombeiro de Alijó: – Vou chamar o meu colega.

Operadora – Vai chamar o colega. Pronto, então siga. Vá. Bairro de Santo António. n.º **

Bombeiro de Alijó: – Qual é o número da ficha?

Operadora: – 32706, Sabe onde fica?

Bombeiro de Alijó: – Sei, sei. Vou já ligar.

Operadora: – Pronto, obrigada.


Existem óbvias falhas na coordenação, disponibilidade, meios e formação, agravadas pelo encerramento de uma urgência sem que se verificasse uma substituição efectiva, esta da responsabilidade do Ministério da Saúde.

Quer o vídeo do debate na SIC, quer a transcrição obtida a partir do CM, são exemplificativos de um País que muitos desconhecem e, ao contrário do que alguns pretendem fazer crer, não denunciam uma rara excepção, mas tão somente uma triste realidade que se teima em ignorar.

Esta situação, que era previsível, revela as fragilidades de um sistema de socorro que, ao substituir cada vez mais as unidades hospitalares, poderá brevemente entrar em colapso, colocando em sério risco as populações mais afastadas dos grandes centros urbanos.

3 comentários:

Reinaldo Baptista disse...

Boas, Nuno fiquei seriamente preocupado com toda essa polémica, nunca pensei que em pleno século XX existissem quartéis de Bombeiros sem Bombeiros, uma realidade que se teima a ignorar ou esconder o que realmente se passa em Portugal.

Penso que o INEM fosse um pouco mais leal com quem diariamente tenta combater as suas deficiências, e a operadora deve ser alvo de um rigoroso inquérito, porque essa chamada tem contornos lamentáveis e graves.

Esta na hora de se definir o que o governo quer dos bombeiros, temos tudo, meios e homens bem formados, se não existe capacidade de os ter como voluntários temo que os ter como profissionais, e alguém vai ter de pagar, senão alguém vai ter que ser chamado a responsablidade

anjo disse...

olá , que guerra que se instalou entre com o inem e os bombeiros e o governo , eu sou bombeira e na minha corporação não temos tido esse tipo de problemas , mas sei que os há em outras corporações , mas sabemos que cada vez + há poucas pessoas com disponibilidade para serem bombeiros pk é preciso tempo , e tb há corporações que não mt bombeiros profissionais , enfim instalou se cá uma guerra , vamos ver o que vais sair daqui .um gd abraço

Nuno Cabeçadas disse...

Olá

Existe uma diferença que se tem vindo a acentuar entre as corporações do Litoral e as do Interior, onde a desertificação e o envelhecimento das populações está a ter um impacto sério no socorro.

O que aconteceu em Alijó, numa zona de difícil acesso e longe dos meios de socorro mais sofisticados, dificilmente aconteceria perto das grandes cidades do Litoral, mas não podemos esquecer que o País é composto de ambas as realidades e devemos a todos os habitantes a mesma solidariedade.

Provavelmente terá que haver uma maior profissionalização a nível do socorro, mas este, por muito eficaz que seja, não pode substituir cuidados que só podem ser prestados em unidades de saúde.

Um abraço