sexta-feira, novembro 03, 2006

"A culpa continua a morrer solteira"


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Floresta queimada

Foi hoje publicado um texto da nossa autoria no "site" dos Bombeiros do Distrito da Guarda, a quem agradecemos a honra do convite para escrever uma crónica.

No mesmo "site" existe um fórum onde este e outros assuntos relacionados com a temática dos bombeiros, da protecção civil ou do socorro, podem ser debatidos e que convidamos a visitar.

Porque consideramos importante que a discussão da responsabilização pelos acidentes que sucedem, de modo a que se tirem as devidas elações e se evite a sua repetição, o texto é aqui transcrito.

Recentemente publicado, o relatório sobre o incêndio de Famalicão da Serra, aponta para a falta de equipamento adequado nas causas da morte do bombeiro português que aí faleceu juntamente com cinco sapadores chilenos.

Para a comissão de inquérito a este acidente, o bombeiro voluntário falecido "teria sobrevivido se tivesse equipamento de protecção pessoal enquanto que os restantes cinco sapadores chilenos não tiveram alternativa dada a sua localização e o comportamento eruptivo do fogo".

O mesmo relatório adianta ainda que "quando há um incêndio numa encosta nunca as equipas de combate aos incêndios florestais se deviam meter à frente do fogo".

É sempre difícil emitir uma opinião objectiva sobre relatórios qua analisam tragédias, mantendo a necessária distância e analizando friamente a situação, mas do seu conteúdo surgem algumas questões de princípio que devem ser colocadas.

Primeiramente, da falta de divulgação dos relatórios que envolvem acidentes mortais, resulta a impossibilidade de evitar eventuais erros no futuro, pelo que os lamentos constantes relativos à morte de bombeiros continuarão, certamente, a ouvir-se.

Também derivado desta falta de divulgação, não há lugar a uma revisão de ensinamentos, treinos, métodos e procedimentos tácticos, essenciais à segurança nas operações, nem se procede a uma correcta avaliação de situações que poderão ocorrer de novo no futuro.

Como consequência directa, existe uma óbvia desresponsabilização, que começa no topo da cadeia hierárquica, dada a impossibilidade de esta tomar as medidas que evitem erros passados para os quais não foram devidamente alertados.

Em segundo lugar, os inquéritos têm, em muitos casos, servido apenas para branquear situações, apagar erros ou proteger interesses, não resultando na responsabilização efectiva de quem adoptou procedimentos errados que poderão ter começado nas primeiras etapas de formação.

Muitas vezes a imposição de ilibar todos ou alguns dos envolvidos, seja por um suposto respeito pelos que perderam a vida, seja para evitar consequências junto de quem, fazendo o seu melhor, não conseguiu evitar um acidente, acaba por condicionar os resultados, tornando-os inúteis em termos de avaliação e de correcção de erros.

É conhecido que sobre o mesmo incidente chegam a ser nomeadas diversas comissões de inquérito, cujas conclusões são sucessivamente rejeitadas até coincidirem com interesses que pemanecem desconhecidos, sendo que a valia técnica ou mesmo a verosimilhança da avaliação chega a ser secundarizada.

Em terceiro lugar, verifica-se que é raro que, após o termo de um inquérito, seja dado conhecimento das conclusões ao Ministério Público, mesmo quando estes apontam para a existência de contornos criminais que podem ser simplesmente a nível de negligência, mas cujas implicações necessitam de ser apuradas.

A ausência de legislação adequada, a dificuldade em apurar responsabilidades quando estas envolvem questões tão complexas como a falta de determinação de procedimentos adequados, de regulamentação ou, simplesmente, de fiscalização, permite uma manifesta impossibilidade de determinar a origem de erros estruturais, cuja existência podem afectar organizações inteiras.

Obviamente, pode-se ir mais longe e chegar ao nível da responsabilização política, mas a diluição de eventuais culpas à medida que se sobe numa hierarquia, tornando mais vaga e difusa a influência de quem, pelo seu afastamento, nunca teve contacto directo com o sucedido, acaba por frustrar quaisquer tentativas de fazer justiça.

Diz-se que em Portugal a culpa morre solteira, e eventos trágicos avaliados em julgamentos recentes apontam nesse sentido, permitindo que os erros do passado se repitam como se estivessemos diante de uma inevitabilidade ditada por uma má sina.

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